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Nesta
edição vou trazer um compilado das ideias mais relevantes de um artigo de Steven
Shorrock, um psicólogo e ergonomista britânico renomado na área de Fatores
Humanos e segurança em sistemas complexos, com destaque na aviação.
Esta
publicação tem autorização do próprio Steven, que cordialmente apoiou que
trouxéssemos para debate em uma revista brasileira.
Nos
últimos anos, "fatores humanos" se popularizou, ampliando seu alcance
além da área especializada. Contudo, essa expansão gerou interpretações
diversas, influenciadas pelas experiências e mentalidades de cada grupo.
Por
isso, é importante esclarecer a qual tipo de "fatores humanos" nos
referimos, pois existem pelo menos quatro interpretações distintas com sentidos
e implicações próprias.
Estes
quatro tipos serão apresentados nesta publicação.
O
primeiro tipo, chamado de “o fator humano”, é usado de forma coloquial para
discutir desempenho e falhas em sistemas, especialmente em acidentes e riscos,
sem definição precisa, focando geralmente em erros ou influências humanas
negativas. Originado em publicações clássicas como The Human Factor in Aircraft
Accidents, o termo é comum entre aviadores, especialistas em segurança da
informação e na mídia, mas raramente adotado por especialistas em fatores
humanos.
“As
vantagens”
De
certo modo, "o fator humano" é mais intuitivamente atraente do que o
termo "fatores humanos", que implica pluralidade. Parece apontar para
algo concreto – uma pessoa, um ser humano com intenção e capacidade de agir. E,
no entanto, também sugere algo vago – um mistério, a "natureza
humana". Os fatores humanos vistos como o fator humano podem,
portanto, ser compreendidos sob a ótica da psicologia humanista, lembrando-nos
de que:
O
indivíduo não pode ser reduzido a "fatores" como uma máquina a suas
peças, nem separado de seu contexto. Cada pessoa é única, mesmo que compartilhe
capacidades e limitações comuns, o que dificulta generalizações precisas.
Além
disso, temos responsabilidade sobre nossas intenções e escolhas — algo que nem
sempre é confortável de abordar na área de fatores humanos. Ainda que o termo
“fator humano” sugira essa dimensão mais profunda, na prática, essa abordagem
raramente se concretiza.
“As
desvantagens”
O
termo “fator humano” costuma ter conotações simplistas e negativas, culpando
principalmente os indivíduos na linha de frente por problemas em sistemas que
deveriam ser bem projetados e gerenciados, reduzindo questões complexas de
segurança a falhas de comportamento isoladas e ignorando contextos mais amplos.
Essa visão limitada, comum na imprensa, falha ao tratar acidentes como
resultado exclusivo de negligência individual, sem considerar a complexidade
dos sistemas envolvidos.
Essa
mentalidade foca em modificar comportamentos para reduzir erros, utilizando
estratégias psicológicas como punição, supervisão e treinamento, muitas vezes
sem integrar a ergonomia e o design sistêmico. Isso pode levar a soluções
injustas, como demissões ou automação, que raramente são eficazes se não
considerarem o sistema como um todo, incluindo o design das tarefas,
equipamentos e ambientes de trabalho.
Vamos
agora falar sobre outo tipo de “Fatores Humanos”.
O
uso em plural se concentra principalmente nas características humanas,
entendidas principalmente por meio do reducionismo. Os fatores humanos incluem,
por exemplo:
·
funções
cognitivas (como atenção, detecção, percepção, memória, julgamento e raciocínio
(incluindo heurísticas e vieses), tomada de decisão – cada uma delas é dividida
em subcategorias)
·
sistemas
cognitivos (como a teoria do processo dual de Kahneman, ou Sistema 1 e Sistema
2)
·
tipos
de desempenho (como o desempenho baseado em habilidades, baseado em regras e
baseado em conhecimento de Rasmussen)
·
tipos
de erro (como deslizes, lapsos e erros da Reason, e centenas de outras
taxonomias, incluindo a do próprio Steven)
·
funções
e qualidades físicas (como força, velocidade, precisão, equilíbrio e alcance)
·
comportamentos
e habilidades (como consciência da situação, tomada de decisão, trabalho em
equipe e outras 'habilidades não técnicas')
·
domínios
de aprendizagem (como a taxonomia de aprendizagem de Bloom) e
·
estados
físicos, cognitivos e emocionais (como estresse e fadiga).
Esses
fatores humanos são vistos como limitações e capacidades gerais, focando nas
características humanas comuns, não no indivíduo. Essa abordagem funciona como
um prisma, que fragmenta a experiência humana em categorias conceituais para
análise.
Esse
tipo de fator humano é enfatizado em uma definição fornecida por um dos
pioneiros dos fatores humanos Alphonse Chapanis (1991):
"Fatores
Humanos é um corpo de conhecimento sobre habilidades humanas, limitações
humanas e outras características humanas que são relevantes para o
design."
Chapanis
continuou dizendo que "a engenharia de fatores humanos é a aplicação
de informações de fatores humanos ao projeto de ferramentas, máquinas,
sistemas, tarefas, empregos e ambientes para uso humano seguro, confortável e
eficaz".
“Fatores
humanos” e “engenharia de fatores humanos” são conceitos integrados, mesmo que
distintos, focando nas habilidades e limitações humanas para o design de
sistemas, embora a teoria nem sempre se traduza na prática. Essas áreas são
estudadas por diversas disciplinas e são centrais em publicações acadêmicas e
treinamentos de habilidades não técnicas, como tomada de decisão e comunicação.
“As
vantagens”
Os
“fatores humanos” — como habilidades, limitações e características — são
essenciais para o design e a gestão eficazes de sistemas. Décadas de pesquisa
geraram um vasto corpo de conhecimento sobre aspectos cognitivos e
fisiológicos, como atenção, memória, erro humano, fadiga e estresse. Esse
conhecimento fundamenta diretrizes de projeto, como os padrões da FAA, e é
amplamente aplicado em fatores humanos e ergonomia, com foco na análise
detalhada do desempenho humano em diferentes contextos de trabalho.
Embora
a psicologia humanista evite reduzir o indivíduo a partes isoladas, a
psicologia cognitiva foca justamente nos processos e funções mentais. Esse
reducionismo, frequentemente criticado, pode ser útil na prática: entender os
limites naturais da mente humana ajuda a explicar falhas, reduz o estigma do
erro e favorece uma discussão mais aberta sobre barreiras culturais à sua
comunicação. Assim, mesmo abordagens mais analíticas podem contribuir para
desmistificar falhas e apoiar melhorias no desempenho humano.
“As
desvantagens”
Focar
apenas nas habilidades e limitações humanas, sem considerar a pessoa como um
todo, o contexto e as interações do sistema, cria uma visão reducionista que
distorce a experiência real. Conceitos como carga de trabalho e consciência
situacional fragmentam essa complexidade, enquanto abordagens qualitativas são
essenciais para captar a riqueza da vivência. Além disso, a linguagem técnica e
análises baseadas em erros descontextualizam o desempenho e dificultam
discussões significativas sobre responsabilidade, gerando frustração entre os
envolvidos. Por fim, ao ignorar o contexto real do trabalho, intervenções
focadas apenas no indivíduo falham em promover melhorias duradouras, mostrando
que mudanças mais amplas no design e no sistema são necessárias.
3.
Fatores que
afetam os humanos
Esse
tipo de "fatores humanos" se volta para os fatores – externos e internos
aos humanos – que afetam o desempenho humano: equipamentos, procedimentos,
supervisão, treinamento, cultura, bem como aspectos da natureza humana, como
nossas capacidades e limitações. Os fatores que afetam os seres humanos tendem
a incluir:
A
seguinte definição bem conhecida do Executivo de Saúde e
Segurança do Reino Unido (1999) parece enfatizar o tipo de
fatores humanos 'fatores que afetam os seres humanos':
"Os
fatores humanos referem-se a fatores ambientais, organizacionais e de trabalho,
e características humanas e individuais, que influenciam o comportamento no
trabalho de uma forma que pode afetar a saúde e a segurança" (Health
and Safety Executive, Reducing error and influencing behavior HSG48)
Esse
tipo de fator humano, tradicional e familiar aos especialistas, é amplamente
abordado em cursos, textos e estudos como módulos ou capítulos específicos.
Também interessa aos profissionais de segurança, que utilizam taxonomias para classificar
causas de incidentes e avaliar confiabilidade humana. Além disso, esse enfoque
se encaixa bem na estrutura funcional das organizações (treinamento,
procedimentos, engenharia), facilitando sua aplicação prática e reconhecendo
que diversos fatores influenciam o comportamento.
“Vantagens”
Esse
tipo de fatores humanos compartilha aspectos positivos, como um vasto
conhecimento que ajuda a entender, classificar e prever os efeitos no
desempenho humano, influenciado pelo design de equipamentos, procedimentos,
tarefas e sistemas de trabalho. Esse entendimento facilita a aplicação prática
no desenvolvimento de artefatos, regulamentos e sistemas de gestão, sendo
relativamente fácil de compreender em nível básico, pois a maioria reconhece
que o design afeta o comportamento. Além disso, essa perspectiva não só aborda
aspectos cognitivos, emocionais e físicos do ser humano, mas também considera
fatores externos ao indivíduo, como ambiente e contexto de trabalho,
reconhecendo que o “erro humano” geralmente é um sintoma de múltiplos aspectos
da situação, e não um simples descuido.
Nosso
desempenho está sujeito a muitos fatores, e muitos deles estão além do nosso
controle direto.
Esse
tipo de fator humano enfatiza o design como meio principal para influenciar o
desempenho e o bem-estar, além de instrução, treinamento e supervisão. A
perspectiva dos “fatores que afetam os seres humanos” também reflete a
organização funcional das empresas, com especialidades como treinamento,
procedimentos e design. Juntos, esses conceitos formam a compreensão comum de
“fatores humanos” para funcionários e gerentes nas organizações.
“Desvantagens”
A
perspectiva dos “fatores que afetam os humanos” aborda muitas desvantagens da
visão tradicional dos “fatores humanos”, mas ainda enfrenta desafios,
especialmente ao lidar com a complexa interação de múltiplos fatores no
contexto real de trabalho. A dinâmica e a confusão desses fatores tornam
difícil entender seu impacto conjunto no desempenho, enquanto há uma tendência,
em organizações e na ciência, a preferir explicações simplificadas de fator
único. Experimentos geralmente isolam variáveis específicas, controlando ou
ignorando muitos outros fatores relevantes do ambiente real, o que limita a
compreensão das interações complexas que ocorrem no trabalho como realmente é
feito. Por isso, mesmo com ferramentas avançadas e bancos de dados, compreender
e prever os efeitos combinados desses múltiplos fatores em ambientes reais
permanece uma tarefa complexa e desafiadora.
Uma
abordagem fatorial reducionista pode ocultar padrões de influência e efeitos
emergentes em todo o sistema.
Os fatores
humanos são frequentemente vistos como elementos isolados e lineares, mas na
prática são interconectados e geram efeitos emergentes que não podem ser separados
facilmente. Isso faz com que intervenções que funcionam em condições ideais
falhem em ambientes reais, onde pessoas também influenciam o sistema, criando
ciclos de feedback complexos. Essa visão simplista dificulta a gestão eficaz da
segurança, que costuma focar apenas nas falhas humanas, ignorando seu papel
positivo.
Essa abordagem
fragmentada também distancia a disciplina da experiência real dos
trabalhadores, que é mais rica e contextualizada do que os conceitos técnicos
apresentados. Além disso, dificulta a atribuição clara de responsabilidade,
pois dispersa a prestação de contas em sistemas organizacionais complexos, o
que pode parecer uma forma de justificar comportamentos inaceitáveis e desviar
o foco das falhas sistêmicas e das nuances da condição humana.
4.
Interação Sociotécnica
do Sistema
Esse
tipo de “fatores humanos” foca em entender e influenciar a interação
intencional entre pessoas e os elementos dos sistemas sociotécnicos,
especialmente no contexto do “trabalho” industrial. A definição a seguir, da
Associação Internacional de Ergonomia e adotada por várias sociedades,
representa essa visão dos fatores humanos.
"Ergonomia
(ou fatores humanos) é a disciplina científica preocupada com a compreensão das
interações entre humanos e outros elementos de um sistema, e a profissão que
aplica teoria, princípios, dados e métodos ao design para otimizar o bem-estar
humano e o desempenho geral do sistema."
“Fatores
humanos” e “ergonomia” são formalmente indistinguíveis e usados de forma
intercambiável por especialistas, apesar de suas origens diferentes nos EUA e
Europa. Sociedades profissionais reconhecem essa equivalência, que pode
surpreender quem não é da área. Em muitos idiomas, o termo equivalente a
“ergonomia” é o mais comum.
A
ergonomia, originada do grego para "leis do trabalho", baseia-se em
princípios que focam na interação entre pessoas e equipamentos, especialmente
no design que afeta o desempenho. Estudos iniciais mostraram que erros humanos
geralmente surgem de falhas na interação com o ambiente e o design, não do
indivíduo isoladamente.
Essa
disciplina combina ciência e design para projetar interações entre pessoas,
ferramentas e ambientes, visando melhorar tanto o desempenho do sistema quanto
o bem-estar humano. Essa abordagem integrada é adotada por especialistas em
fatores humanos, engenharia de sistemas, design de interação e antropologia,
que buscam equilibrar objetivos técnicos e necessidades humanas em contextos
reais.
“Vantagens”
Esse
tipo de fator humano leva em consideração as limitações e capacidades humanas,
influências no desempenho humano e influências humanas no desempenho do
sistema. Está enraizado em:
Esse
tipo de fator humano foca na interação complexa e não linear entre diversos
sistemas interdependentes, usando métodos sistêmicos para entender efeitos
emergentes ao longo do tempo. Diferente da visão linear tradicional, reconhece
que intervenções simples podem gerar consequências inesperadas, considerando
todo o contexto e sistemas envolvidos. Essa abordagem única valoriza a
complexidade real do mundo, buscando melhorar tanto o desempenho do sistema
quanto o bem-estar humano.
“Desvantagens”
Esse
tipo de fator humano é o menos intuitivo e frequentemente negligenciado, pois
requer pensar em interações complexas e não lineares em sistemas sociotécnicos
amplos, diferentemente das abordagens simplistas que focam em causas isoladas.
Na prática, especialmente na gestão de segurança, as ferramentas raramente
capturam essa complexidade, e as soluções dependem de múltiplos fatores
contextuais e interações entre pessoas, artefatos e sistemas. Além disso, essa
perspectiva tende a despersonalizar a pessoa, tornando-a um componente do
sistema, o que exige integrar pensamento sistêmico com uma abordagem
humanística para valorizar experiências individuais. Um desafio crucial é a
responsabilidade: apesar da complexidade emergente, a justiça exige que
indivíduos sejam responsabilizados por suas escolhas, evitando que o pensamento
sistêmico disperse essa responsabilidade de forma injusta.
Finalizo
por aqui com as ideias propostas por Steven Shorrock que nos presenteiam com um
olhar mais ampliado sobre o tema. Vale a pena conhecer o artigo em sua íntegra
no link https://humanisticsystems.com/2017/08/12/four-kinds-of-human-factors-2-factors-of-humans/
Encontro
vocês na próxima edição.
Até
a próxima!!!
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