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Quatro tipos de Fatores Humanos, por Steven Shorrock (traduzido e adaptado por Thomaz Doro)


Nesta edição vou trazer um compilado das ideias mais relevantes de um artigo de Steven Shorrock, um psicólogo e ergonomista britânico renomado na área de Fatores Humanos e segurança em sistemas complexos, com destaque na aviação.

Esta publicação tem autorização do próprio Steven, que cordialmente apoiou que trouxéssemos para debate em uma revista brasileira.

Nos últimos anos, "fatores humanos" se popularizou, ampliando seu alcance além da área especializada. Contudo, essa expansão gerou interpretações diversas, influenciadas pelas experiências e mentalidades de cada grupo.

Por isso, é importante esclarecer a qual tipo de "fatores humanos" nos referimos, pois existem pelo menos quatro interpretações distintas com sentidos e implicações próprias.

Estes quatro tipos serão apresentados nesta publicação.

1.        O fator humano

O primeiro tipo, chamado de “o fator humano”, é usado de forma coloquial para discutir desempenho e falhas em sistemas, especialmente em acidentes e riscos, sem definição precisa, focando geralmente em erros ou influências humanas negativas. Originado em publicações clássicas como The Human Factor in Aircraft Accidents, o termo é comum entre aviadores, especialistas em segurança da informação e na mídia, mas raramente adotado por especialistas em fatores humanos.

“As vantagens”

De certo modo, "o fator humano" é mais intuitivamente atraente do que o termo "fatores humanos", que implica pluralidade. Parece apontar para algo concreto – uma pessoa, um ser humano com intenção e capacidade de agir. E, no entanto, também sugere algo vago – um mistério, a "natureza humana". Os fatores humanos vistos como o fator humano podem, portanto, ser compreendidos sob a ótica da psicologia humanista, lembrando-nos de que:

  • Os seres humanos, enquanto humanos, são mais do que a soma de suas partes. Eles não podem ser reduzidos a componentes.
  • Os seres humanos existem em um contexto exclusivamente humano, bem como em uma ecologia cósmica.
  • Os seres humanos têm consciência e consciência de que são conscientes – ou seja, são conscientes de si. A consciência humana sempre inclui uma percepção de si mesmo no contexto de outras pessoas.
  • Os seres humanos têm alguma capacidade de escolha e, com ela, responsabilidade.
  • Os seres humanos são intencionais, têm objetivos, sabem que causam eventos futuros e buscam sentido, valor e criatividade.

O indivíduo não pode ser reduzido a "fatores" como uma máquina a suas peças, nem separado de seu contexto. Cada pessoa é única, mesmo que compartilhe capacidades e limitações comuns, o que dificulta generalizações precisas.

Além disso, temos responsabilidade sobre nossas intenções e escolhas — algo que nem sempre é confortável de abordar na área de fatores humanos. Ainda que o termo “fator humano” sugira essa dimensão mais profunda, na prática, essa abordagem raramente se concretiza.

“As desvantagens”

O termo “fator humano” costuma ter conotações simplistas e negativas, culpando principalmente os indivíduos na linha de frente por problemas em sistemas que deveriam ser bem projetados e gerenciados, reduzindo questões complexas de segurança a falhas de comportamento isoladas e ignorando contextos mais amplos. Essa visão limitada, comum na imprensa, falha ao tratar acidentes como resultado exclusivo de negligência individual, sem considerar a complexidade dos sistemas envolvidos.

Essa mentalidade foca em modificar comportamentos para reduzir erros, utilizando estratégias psicológicas como punição, supervisão e treinamento, muitas vezes sem integrar a ergonomia e o design sistêmico. Isso pode levar a soluções injustas, como demissões ou automação, que raramente são eficazes se não considerarem o sistema como um todo, incluindo o design das tarefas, equipamentos e ambientes de trabalho.

Vamos agora falar sobre outo tipo de “Fatores Humanos”.

2.        Fatores dos humanos

O uso em plural se concentra principalmente nas características humanas, entendidas principalmente por meio do reducionismo. Os fatores humanos incluem, por exemplo:

·        funções cognitivas (como atenção, detecção, percepção, memória, julgamento e raciocínio (incluindo heurísticas e vieses), tomada de decisão – cada uma delas é dividida em subcategorias)

·        sistemas cognitivos (como a teoria do processo dual de Kahneman, ou Sistema 1 e Sistema 2)

·        tipos de desempenho (como o desempenho baseado em habilidades, baseado em regras e baseado em conhecimento de Rasmussen)

·        tipos de erro (como deslizes, lapsos e erros da Reason, e centenas de outras taxonomias, incluindo a do próprio Steven)

·        funções e qualidades físicas (como força, velocidade, precisão, equilíbrio e alcance)

·        comportamentos e habilidades (como consciência da situação, tomada de decisão, trabalho em equipe e outras 'habilidades não técnicas')

·        domínios de aprendizagem (como a taxonomia de aprendizagem de Bloom) e

·        estados físicos, cognitivos e emocionais (como estresse e fadiga).

Esses fatores humanos são vistos como limitações e capacidades gerais, focando nas características humanas comuns, não no indivíduo. Essa abordagem funciona como um prisma, que fragmenta a experiência humana em categorias conceituais para análise.

Esse tipo de fator humano é enfatizado em uma definição fornecida por um dos pioneiros dos fatores humanos Alphonse Chapanis (1991):

"Fatores Humanos é um corpo de conhecimento sobre habilidades humanas, limitações humanas e outras características humanas que são relevantes para o design."

Chapanis continuou dizendo que "a engenharia de fatores humanos é a aplicação de informações de fatores humanos ao projeto de ferramentas, máquinas, sistemas, tarefas, empregos e ambientes para uso humano seguro, confortável e eficaz". 

“Fatores humanos” e “engenharia de fatores humanos” são conceitos integrados, mesmo que distintos, focando nas habilidades e limitações humanas para o design de sistemas, embora a teoria nem sempre se traduza na prática. Essas áreas são estudadas por diversas disciplinas e são centrais em publicações acadêmicas e treinamentos de habilidades não técnicas, como tomada de decisão e comunicação.

“As vantagens”

Os “fatores humanos” — como habilidades, limitações e características — são essenciais para o design e a gestão eficazes de sistemas. Décadas de pesquisa geraram um vasto corpo de conhecimento sobre aspectos cognitivos e fisiológicos, como atenção, memória, erro humano, fadiga e estresse. Esse conhecimento fundamenta diretrizes de projeto, como os padrões da FAA, e é amplamente aplicado em fatores humanos e ergonomia, com foco na análise detalhada do desempenho humano em diferentes contextos de trabalho.

Embora a psicologia humanista evite reduzir o indivíduo a partes isoladas, a psicologia cognitiva foca justamente nos processos e funções mentais. Esse reducionismo, frequentemente criticado, pode ser útil na prática: entender os limites naturais da mente humana ajuda a explicar falhas, reduz o estigma do erro e favorece uma discussão mais aberta sobre barreiras culturais à sua comunicação. Assim, mesmo abordagens mais analíticas podem contribuir para desmistificar falhas e apoiar melhorias no desempenho humano.

“As desvantagens”

Focar apenas nas habilidades e limitações humanas, sem considerar a pessoa como um todo, o contexto e as interações do sistema, cria uma visão reducionista que distorce a experiência real. Conceitos como carga de trabalho e consciência situacional fragmentam essa complexidade, enquanto abordagens qualitativas são essenciais para captar a riqueza da vivência. Além disso, a linguagem técnica e análises baseadas em erros descontextualizam o desempenho e dificultam discussões significativas sobre responsabilidade, gerando frustração entre os envolvidos. Por fim, ao ignorar o contexto real do trabalho, intervenções focadas apenas no indivíduo falham em promover melhorias duradouras, mostrando que mudanças mais amplas no design e no sistema são necessárias.

3.        Fatores que afetam os humanos

Esse tipo de "fatores humanos" se volta para os fatores – externos e internos aos humanos – que afetam o desempenho humano: equipamentos, procedimentos, supervisão, treinamento, cultura, bem como aspectos da natureza humana, como nossas capacidades e limitações. Os fatores que afetam os seres humanos tendem a incluir:

  • aspectos da atividade organizacional planejada (por exemplo, supervisão, treinamento, regulamentação, transferência, comunicação, programação)
  • artefatos organizacionais (por exemplo, equipamentos, procedimentos, políticas)
  • aspectos emergentes de organizações e grupos (por exemplo, cultura, carga de trabalho, confiança, trabalho em equipe, relacionamentos)
  • aspectos do ambiente projetado (por exemplo, layout do aeroporto, design do espaço aéreo, design do hospital, sinalização, iluminação)
  • aspectos do ambiente natural (por exemplo, clima, terreno, flora, fauna)
  • aspectos de situações transitórias (por exemplo, emergências, bloqueios, atrasos, congestionamentos, atividades temporárias)
  • aspecto do trabalho e design do trabalho (por exemplo, ritmo, tempo, sequenciamento, variedade, escala)
  • aspectos das partes interessadas (por exemplo, idioma, função)
  • aspectos das funções, qualidades e estados humanos que afetam o desempenho (por exemplo: funções cognitivas como atenção, detecção, percepção, memória, julgamento e raciocínio, tomada de decisão, controle motor, fala; funções físicas e qualidades como força, velocidade, precisão, equilíbrio e alcance; estados físicos, cognitivos e emocionais, como estresse e fadiga).

A seguinte definição bem conhecida do Executivo de Saúde e Segurança do Reino Unido (1999) parece enfatizar o tipo de fatores humanos 'fatores que afetam os seres humanos':

"Os fatores humanos referem-se a fatores ambientais, organizacionais e de trabalho, e características humanas e individuais, que influenciam o comportamento no trabalho de uma forma que pode afetar a saúde e a segurança" (Health and Safety Executive, Reducing error and influencing behavior HSG48)

Esse tipo de fator humano, tradicional e familiar aos especialistas, é amplamente abordado em cursos, textos e estudos como módulos ou capítulos específicos. Também interessa aos profissionais de segurança, que utilizam taxonomias para classificar causas de incidentes e avaliar confiabilidade humana. Além disso, esse enfoque se encaixa bem na estrutura funcional das organizações (treinamento, procedimentos, engenharia), facilitando sua aplicação prática e reconhecendo que diversos fatores influenciam o comportamento.

“Vantagens”

Esse tipo de fatores humanos compartilha aspectos positivos, como um vasto conhecimento que ajuda a entender, classificar e prever os efeitos no desempenho humano, influenciado pelo design de equipamentos, procedimentos, tarefas e sistemas de trabalho. Esse entendimento facilita a aplicação prática no desenvolvimento de artefatos, regulamentos e sistemas de gestão, sendo relativamente fácil de compreender em nível básico, pois a maioria reconhece que o design afeta o comportamento. Além disso, essa perspectiva não só aborda aspectos cognitivos, emocionais e físicos do ser humano, mas também considera fatores externos ao indivíduo, como ambiente e contexto de trabalho, reconhecendo que o “erro humano” geralmente é um sintoma de múltiplos aspectos da situação, e não um simples descuido.

Nosso desempenho está sujeito a muitos fatores, e muitos deles estão além do nosso controle direto.

Esse tipo de fator humano enfatiza o design como meio principal para influenciar o desempenho e o bem-estar, além de instrução, treinamento e supervisão. A perspectiva dos “fatores que afetam os seres humanos” também reflete a organização funcional das empresas, com especialidades como treinamento, procedimentos e design. Juntos, esses conceitos formam a compreensão comum de “fatores humanos” para funcionários e gerentes nas organizações.

“Desvantagens”

A perspectiva dos “fatores que afetam os humanos” aborda muitas desvantagens da visão tradicional dos “fatores humanos”, mas ainda enfrenta desafios, especialmente ao lidar com a complexa interação de múltiplos fatores no contexto real de trabalho. A dinâmica e a confusão desses fatores tornam difícil entender seu impacto conjunto no desempenho, enquanto há uma tendência, em organizações e na ciência, a preferir explicações simplificadas de fator único. Experimentos geralmente isolam variáveis específicas, controlando ou ignorando muitos outros fatores relevantes do ambiente real, o que limita a compreensão das interações complexas que ocorrem no trabalho como realmente é feito. Por isso, mesmo com ferramentas avançadas e bancos de dados, compreender e prever os efeitos combinados desses múltiplos fatores em ambientes reais permanece uma tarefa complexa e desafiadora.

Uma abordagem fatorial reducionista pode ocultar padrões de influência e efeitos emergentes em todo o sistema.

Os fatores humanos são frequentemente vistos como elementos isolados e lineares, mas na prática são interconectados e geram efeitos emergentes que não podem ser separados facilmente. Isso faz com que intervenções que funcionam em condições ideais falhem em ambientes reais, onde pessoas também influenciam o sistema, criando ciclos de feedback complexos. Essa visão simplista dificulta a gestão eficaz da segurança, que costuma focar apenas nas falhas humanas, ignorando seu papel positivo.

Essa abordagem fragmentada também distancia a disciplina da experiência real dos trabalhadores, que é mais rica e contextualizada do que os conceitos técnicos apresentados. Além disso, dificulta a atribuição clara de responsabilidade, pois dispersa a prestação de contas em sistemas organizacionais complexos, o que pode parecer uma forma de justificar comportamentos inaceitáveis e desviar o foco das falhas sistêmicas e das nuances da condição humana.

4.        Interação Sociotécnica do Sistema

Esse tipo de “fatores humanos” foca em entender e influenciar a interação intencional entre pessoas e os elementos dos sistemas sociotécnicos, especialmente no contexto do “trabalho” industrial. A definição a seguir, da Associação Internacional de Ergonomia e adotada por várias sociedades, representa essa visão dos fatores humanos.

"Ergonomia (ou fatores humanos) é a disciplina científica preocupada com a compreensão das interações entre humanos e outros elementos de um sistema, e a profissão que aplica teoria, princípios, dados e métodos ao design para otimizar o bem-estar humano e o desempenho geral do sistema."

“Fatores humanos” e “ergonomia” são formalmente indistinguíveis e usados de forma intercambiável por especialistas, apesar de suas origens diferentes nos EUA e Europa. Sociedades profissionais reconhecem essa equivalência, que pode surpreender quem não é da área. Em muitos idiomas, o termo equivalente a “ergonomia” é o mais comum.

A ergonomia, originada do grego para "leis do trabalho", baseia-se em princípios que focam na interação entre pessoas e equipamentos, especialmente no design que afeta o desempenho. Estudos iniciais mostraram que erros humanos geralmente surgem de falhas na interação com o ambiente e o design, não do indivíduo isoladamente.

Essa disciplina combina ciência e design para projetar interações entre pessoas, ferramentas e ambientes, visando melhorar tanto o desempenho do sistema quanto o bem-estar humano. Essa abordagem integrada é adotada por especialistas em fatores humanos, engenharia de sistemas, design de interação e antropologia, que buscam equilibrar objetivos técnicos e necessidades humanas em contextos reais.

“Vantagens”

Esse tipo de fator humano leva em consideração as limitações e capacidades humanas, influências no desempenho humano e influências humanas no desempenho do sistema. Está enraizado em:

  • pensamento sistêmico, incluindo uma compreensão dos objetivos do sistema, estrutura do sistema, limites do sistema, dinâmica do sistema e resultados do sistema;
  • design thinking e os princípios e processos de design para uso humano; e
  • compreensão científica das pessoas e da natureza do desempenho humano e estudo empírico da atividade.

Esse tipo de fator humano foca na interação complexa e não linear entre diversos sistemas interdependentes, usando métodos sistêmicos para entender efeitos emergentes ao longo do tempo. Diferente da visão linear tradicional, reconhece que intervenções simples podem gerar consequências inesperadas, considerando todo o contexto e sistemas envolvidos. Essa abordagem única valoriza a complexidade real do mundo, buscando melhorar tanto o desempenho do sistema quanto o bem-estar humano.

“Desvantagens”

Esse tipo de fator humano é o menos intuitivo e frequentemente negligenciado, pois requer pensar em interações complexas e não lineares em sistemas sociotécnicos amplos, diferentemente das abordagens simplistas que focam em causas isoladas. Na prática, especialmente na gestão de segurança, as ferramentas raramente capturam essa complexidade, e as soluções dependem de múltiplos fatores contextuais e interações entre pessoas, artefatos e sistemas. Além disso, essa perspectiva tende a despersonalizar a pessoa, tornando-a um componente do sistema, o que exige integrar pensamento sistêmico com uma abordagem humanística para valorizar experiências individuais. Um desafio crucial é a responsabilidade: apesar da complexidade emergente, a justiça exige que indivíduos sejam responsabilizados por suas escolhas, evitando que o pensamento sistêmico disperse essa responsabilidade de forma injusta.

Finalizo por aqui com as ideias propostas por Steven Shorrock que nos presenteiam com um olhar mais ampliado sobre o tema. Vale a pena conhecer o artigo em sua íntegra no link https://humanisticsystems.com/2017/08/12/four-kinds-of-human-factors-2-factors-of-humans/

Encontro vocês na próxima edição.

Até a próxima!!!

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